You are on page 1of 3

A República – Livro VIII

Por Ana Pismel

Diante da exposição de Sócrates a respeito de como se dá o conhecimento – baseado


na analogia Ver/Conhecer – vimos terminar o desvio proposto por Polemarco e Adimanto.
Nesse parêntese foi discutida a viabilidade da cidade perfeita, que só pode existir de fato se
tiver filósofos por governantes, sua natureza e, seguidamente, a natureza do conhecimento
verdadeiro. O exame empreendido nos livros V, VI e VII culmina na exposição da natureza
do conhecimento do inteligível presente na Alegoria da Caverna, que descreve a ascensão da
alma ao mundo das idéias e, principalmente, à idéia do bem – tida como princípio de
perfeição de todas as demais. Uma vez fundamentadas afirmações que até então tinham sido
tomadas tal como ditas, o trajeto da discussão pode prosseguir e, para tanto, retomando o
exame referente aos tipos de governo encontrados de fato, qual entre eles seria o melhor e
mais justo, assim como o teor da constituição interna do homem semelhante a ela.
Voltando, então, à discussão acerca da cidade, são avaliados os tipos de governo
encontrados nas cidades já existentes, a saber: timarquia, democracia, oligarquia e tirania,
sendo que as outras constituições estariam entre as mencionadas. Todas são examinadas
quanto à sua presença em nível de publico e individual, ainda na intenção de comparar dentro
delas o homem mais justo ao mais injusto, levando ao cabo a pesquisa acerca da natureza e
benefício da justiça.
Com relação ao homem na democracia, já haviam constatado que ele era bom e justo
(544 e). Sócrates propõe que seja examinada em seguida a constituição que privilegia as
honras (denominando-a timarquia) e o homem tal como ela, depois a oligarquia e o homem
oligárquico, seguindo com a democracia e o democrático e, finalmente, a tirania e seu
correspondente no homem (545 e). O exame das constituições segue uma seqüência na qual
cada uma tem origem na corrupção da anterior; de maneira análoga se dá o exame da
constituição dos homens relativo a cada uma delas. O recurso expositivo usado por Sócrates
remete a uma progenitura na qual os filhos seguem uma orientação que os leva a decair
quanto às virtudes da constituição de seu pai. Esse movimento, entretanto, não poderá ser
reproduzido com a máxima precisão, dado o espaço limitado.
Com relação ao homem democrático, como afirmam (544 e), é bom e belo, pois já
incorreram nesse exame anteriormente. Em seguida, é examinada a timarquia, e como ela
decorre da aristocracia. Podemos notar, aqui, que Sócrates parte, como era de se esperar, da
constituição da cidade perfeita que levantou, dando a entender que as outras constituições são
inferiores à reinante nela, uma vez que surgem de sua corrupção. Voltando à timarquia, a
rebelião dos descontentes, que coloca de lado os melhores no governo e na guerra e projeta
homens ávidos por riquezas, opera mudanças na forma de governo. De um lado, os antigos
governantes valorizam a virtude e a constituição anterior; de outro, é difícil achar homens
zelosos e íntegros para os cargos de governo entre os restantes. Pois eles serão ávidos de
riqueza e a valorizarão no particular enquanto a regulam no publico, descuidando, além disso,
das Musas e da ginástica. Em síntese, tanto tal governo quanto o homem correspondente a ele
são um misto de bem e mal, o que caracteriza essa forma de governo.
A oligarquia, por sua vez, é examinada na cidade e no homem que a ela se assemelha.
Uma vez sabido que ela é a forma de governo que tem por critério de participação no governo
o censo, ou seja, um mecanismo que permite apenas os ricos no governo, ventando aos pobres
essa possibilidade, passa-se a examinar o homem oligárquico. Tal homem, perante a busca de
riqueza, termina por valorizá-la mais que a virtude, organizando o censo justamente para
controlar o governo e continuar em superioridade em relação aos outros. O que acaba sendo
desvantajoso, uma vez que os mais ricos nem sempre são os mais qualificados para exercer
tais cargos. Isso prejudica a administração da cidade e a divide em duas partes: a rica e a
pobre. Outra desvantagem, segundo Sócrates (552 a), é a multiplicidade de funções admitida
na constituição. Tem-se na cidade oligárquica governantes ricos, mas cidadãos vivendo na
mendicância.
O homem examinado a seguir, parcimonioso e trabalhador, abstêm-se do supérfluo, o
que se dá também na cidade cujo governo é conforme a ele. No entanto, se essas
características estão presentes em tais constituições, não se deve a educação, mas à
necessidade – não sendo genuínas. Dessa forma, mesmo comedido na vida prática, havendo
oportunidade, esse homem comete ações corruptas, em se tratando de bens alheios. Mesmo
tendo postura melhor que os já vistos, a verdadeira virtude da alma ele não possui (554 e). É
importante lembramos que a permissividade da oligarquia gera descontentamento em grande
parte dos cidadãos. Essas tensões culminam na ruptura dessa constituição. Com efeito,
Sócrates diz sobre isso: “passa a existir democracia, creio eu, quando os pobres, vitoriosos,
matam uns, expulsam outros, e aos restantes fazem participar do governo e das
magistraturas em pé de igualdade e, no mais das vezes, cargos são distribuídos por sorteio”
(577a). Eis o homem democrático e sua cidade par.
O modo de vida vigente em tal cidade pode parecer belo a princípio, mas o desprezo
pela busca da verdadeira bondade, assim como a excessiva indulgência e o descaso para com
os estudos fazem dela bem menos livre do que seria de se esperar, na medida em que se torna
escravo de sua liberdade.
Por fim, é examinado o tipo de governo que Sócrates define como “a mais bela
constituição, e o mais belo homem” (562 a): a tirania. Derivada, pos sua vez, da democracia,
ela tem por gênese a busca insaciável da liberdade em tal governo, é isso que a leva a
transformar-se em tirania. Aos que a levam ao extremo cabe a punição por parte dos outros.
Isso faz com que alguns – os que punem – sejam tidos como oligarcas e ímpios, havendo
necessidade de proteção para que não caiam em ciladas. Antes de contratar estrangeiros, seria
bem mais fácil libertar escravos que já estão na cidade, pois esses serão gratos e o defenderão
sempre. Daí nasce a condição de um indivíduo que, uma vez protegido, pune os que vão
contra o povo, defendendo-o. Quando, porém, não houver mais malfeitores, ele será obrigado
a manter sua posição de forma ostensiva e violenta. Eis o tirano de Sócrates, finalizando a
exposição das diferentes formas de governo, que domina o Livro VIII da obra.
Pode-se notar o fato de que para Sócrates, os homens, na democracia são livres em
excesso, o que prejudica a constituição, na medida em que seus cidadãos, justamente por
terem essa liberdade, se revoltam com freqüência. A tirania, ao contrário, não detém para seus
cidadãos tal liberdade, mas é elogiada por Sócrates, pois é a forma de governo que mais se
aproxima da que reina em sua cidade perfeita.
É interessante retomar a observação quanto ao caráter didático da estratégia expositiva
de Sócrates, pois ao ir colocando a sucessão de constituições, vai postando lado a lado com
elas o homem que a ela se assemelha em constituição interna, assim como vinha fazendo com
a pesquisa da justiça e injustiça na cidade. Alias, foi devido a essa estratégia que se deu
anteriormente a necessidade da construção de uma cidade perfeita que permitisse empreender
justamente essa comparação entre a constituição em nível de cidade e a constituição interna
dos homens. O Livro VIII deixa ao seguinte a análise do homem tirano, movimento que
certamente constitui para Sócrates o meio de chegar à constituição de sua cidade perfeita e
expor como se dá o governo dos reis filósofos.

Bibliografia

Platão, A República; tradução de Ana Lia de Almeida Prado; Martins Fontes, 2006.

You might also like