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miradouro

MIRADAS ALÉM DA MIRAGEM

http://miradouro.wordpress.com/2009/09/28/a-classe-media-aplaude-a-producao-
policial-da-invisibilidade/

A classe média aplaude a produção policial da invisibilidade

segunda-feira, setembro 28 por Fernando

“É a antítese do 174”.

Assim o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, definiu a ação da polícia no caso
em que um atirador de elite matou um homem que fazia refém uma mulher na Tijuca na
última sexta-feira ameaçando matá-la com uma granada.

Ele foi além: “eu tenho um grande secretário que é o Mariano Beltrame e um grande
comandante da PM, grandes oficiais, soldados, cabos e sargentos preparados para isso.
O mérito é todo deles. O meu único mérito foi dar independência e autonomia e dizer:
façam o melhor para salvar a vida daquela refém”.

No sábado vi nos telejornais “o emocionante encontro do herói com a vitima”. O major


que efetuou o disparo foi entregar flores para a mulher que ajudou a salvar.

Pois eu vi e revi essas reportagens e, assim como o governador Cabral – assim, aliás,
como quase todo mundo -, também lembrei do ônibus 174. Mas não creio que esta
história seja a antítese daquela, ao contrário.

Fico pensando no documentário Ônibus 174, de José Padilha, que busca entender a
tragédia de nove anos atrás não apenas revisitando a desastrada ação policial de então,
mas principalmente desnudando Sandro, o anti-herói que de sobrevivente da chacina da
Candelária virou um dos mais famosos sequestradores de nossa história: sua história,
seus o quês, quens, ondes, quandos, comos e porquês.

É possível que Sérgio Ferreira Pinto Júnior, nosso novo anti-herói, tenha tido uma
trajetória de vida muito diferente da de Sandro, embora eu duvide um bocado.

De qualquer forma, tentar entender a tragédia do ponto de vista do sujeito que, pego em
flagrante tentando roubar um carro, tenha entrado em desespero suficiente para ameaçar
matar uma mulher com uma granada, certamente nos ajudará a compreender melhor os
nossos problemas de segurança pública.

Faria melhor o governador Cabral se, em vez de tentar aproveitar o “sucesso” da


operação policial para si, fosse menos intelectualmente desonesto, ele que sabe que uma
e outra histórias são tão trágicas quanto, apenas têm desfechos diferentes. Faria melhor
se ficasse quieto e trabalhasse para resolver os problemas de segurança pública do Rio,
ele que sabe que estes são complexos demais para serem resolvidos apenas com fuzis e
granadas.
Faria melhor a imprensa se fosse reportar não apenas o emocionante encontro do major
Busnello com Ana Cristina, mas também ouvir de parentes e amigos de Sérgio quem era
ele e o que poderia ter motivado o sequestro.

A ação de sexta-feira tem ares de “happy end” para a classe média brasileira, e isso
obscurece um vaticínio de péssimo agouro: se não soubermos enxergar o que produziu
Sandro e Sérgio, a tragédia voltará a acontecer, seja na próxima esquina, seja no
próximo ônibus.

Como diz brilhantemente o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública Luis Eduardo


Soares em Ônibus 174:

“Foi a polícia que matou os colegas de Sandro na Candelária e foi a polícia que
completou o trabalho sujo. É como se as duas pontas se fechassem: à polícia cabe o
trabalho sujo que a sociedade não quer ver, mas que em algum lugar obscuro dos seus
pensamentos deseja que se realize, que se anulem os “Sandros”, que os “Sandros”
desapareçam das nossas vistas. Nós não queremos ver essa realidade, não queremos
suportar essa realidade. Então a invisibilidade é, ao final, reconquistada pela
produção policial da invisibilidade, através da anulação que a morte gera”.

21.9.06

Invisibilidade e pena - O ônibus 174


http://tempestadeseideias.blogspot.com/2006/09/invisibilidade-e-pena-o-
nibus-174.html

Eu queria escrever um texto acadêmico, um texto sério, mas não posso, não me permito
fazê-lo. No início, após ter assistido o filme/documentário "O ônibus 174", pensei em
escrever um artigo que tivesse como centro das discussões a criminologia etiológica de
Lombroso e as desigualdades social do Brasil. Na verdade eu nem sei se daria certo o tal
artigo, mas o fato é que o meu eu poético não me permite, o verso e a prosa dizem mais
com seu sentimento - talvez até uma crônica jornalística, dessas que se ouvem em
matérias sobre fome e pobreza daria certo – e é isso que tentarei dizer pra vocês amigos,
esse sentimento de raiva, de impotência, de descrença que me toma a cada fato como
esse.

Toda a trama se inicia com um "comum" assalto à ônibus na avenida Jardim Botânico,
na cidade do Rio de Janeiro. Até aí tudo estava correndo bem, de um lado o marginal,
do outro os passageiros, que aceitariam a situação passivamente (ele portava uma arma).
O problema é que o roubo, um simples 157 aumentado pelo uso da arma (§ 2º, I do
mesmo artigo, CP), se transforma num sequestro, com achegada da polícia, e esse
sequestro se torna um imenso espetáculo midiático.

Como protagonista está Sandro dos Santos (O vagabundo sequestrador) e as vítimas, em


sua maioria mulheres e jovens, todos dentro do "Ônibus 174". E como coadjuvante está
a Polícia Militar e o BOPE (batalhão da PM), na tentativa de resolver o conflito e
apreensiva pela falta de instrução e estrutura física e técnica.
Pronto. O circo está armado e sendo transmitido pra todo o país em todas as emissoras
de televisão aberta, o Brasil para pra ver o maior sequestro e o primeiro transmitido em
rede nacional e em tempo real em toda a "história circense" da nossa televisão. O roubo
que não é mais roubo, agora tentativa, as vítimas mantida como reféns e a realidade
nojenta de um país da mesma estirpe.

Ao ver que a sua vil existência estava tomando dimensões incríveis e que após o
término do sequestro/espetáculo restariam dois fins inevitáveis (a morte ou o cárcere),
Sandro toma as rédeas e dá partida no seu vôo surreal e aterrorizante. Surreal porque
com a violência, com o porte da arma em mãos, Sandro perdera toda a invisibilidade
que o afogava no nada, perdera a carga do estigma social que o tornava invisível
(marcado à força) e sentira-se o ser mais provido de visibilidade: Sandro enfim insurgia
e era visto, por um sentimento falso de potência, uma sensação inversa do uso da força
para se sentir alguém. E aterrorizante porque no decorrer do sequestro, nos deparamos
com duas realidades conflitantes: a doa marginal maléfico (o câncer social) e a do
jovem impotente, do jovem esquecido, negligenciado pela sociedade.

Estamos falando aqui, amigos, de seres que passam e ninguém vê, de jovens que
diariamente são ignorados, de meninos e meninas, que trazem uma carga negativa, uma
etiqueta negativa que os impede de serem olhados além daquilo que se atribui nessas
etiquetas. Quando se coloca uma etiqueta negativa em alguém, toda a possibilidade de
um olhar além é negada, toda a possibilidade de ver um ser que sente, que pensa, um ser
que sofre não cabe, porque com isso dá-se um processo de aniquilação dessas pessoas,
desses jovens. Eles não existem como gente, e sim como marginais, é com a negação
que se dá aniquilação, porque ninguém quer esses jovens na sua rua, ninguém quer
esses jovens perto de si, então os matam aos poucos com a invisibilidade. Estamos
falando de jovens que estão com fome de importância, que não suportam mais viver
uma vida fantasma, que não suportam mais ter que pegar em armas para serem
encarados, que não suportam mais olhares de medo em relação a eles. Jovens que
clamam por uma família, jovens que estão com fome de existência, porque eles não
existem para a sociedade. Essa mesma sociedade que os produz, sociedade que cria
milhares de Sandros, marginais, invisíveis e que os destrói, que os aniquila.

As câmeras de televisão e os flexes de jornais representavam uma saída no fim do túnel


para Sandro, porque quem iria matá-lo ao vivo? A presença da mídia representou um
viés de escape para um final menos trágico. Sandro encenou uma situação criando dois
diálogos, o de quem estava dentro do ônibus e o de quem estava fora, e mostrou pra
todo o Brasil a fragilidade do ponto de vista midiático e do senso comum, como um
todo, que generaliza, impossibilitando uma extrapolação da interpretação, porque toda a
generalização se torna superficial e acaba com as particularidades, com os "aléns".

O homem delinqüente estava posto pra quem quisesse ver, um homem que é construído
socialmente, um homem que representa todo o medo social, o medo que as pessoas têm
de si mesmas, o pavor de admitir a sua própria torpeza, atribuindo ao outro a parte suja,
o lado nebuloso da história. O homem delinqüente era mal por natureza, porque não
tinha uma explicação lógica para o crime que ele estava cometendo. Era um vagabundo,
um sem vergonha, um desgraçado, um drogado, um traficante (terrível traficante!), era o
mal da sociedade. O homem delinqüente precisava morrer!

A saída que Sandro arranjou era inevitável, ele sabia, não tinha como fugir, não tinha
pra onde recorrer, estava cercado por todos os lados. Sandro estava sendo vigiado,
faltava-lhe a punição, faltava-lhe a pena. "O espetáculo diz o seguinte: que no final é a
morte do bandido". A pena seria- lhe aplicada sem nenhum processo legal, era a pena da
inquisição sendo colocada em prática novamente, numa sociedade ainda com
concepções medievais.

À polícia coube o papel que os ali presentes quiseram fazer (nem sempre é assim), a
polícia matou Sandro e finalizou o espetáculo com a justiça feita com as próprias mãos
(Do Estado). o Estado, que à princípio surgira para impedir a justiça privada, fez o que é
papel dele reprimir (que trágica contradição, não?).
Animais. Eram muitos animais, uma manada, não sei dizer a espécie, me parece que
daquelas mais ferozes, daquelas mais loucas, mais impulsivas, animais desgraçados, que
matam a si próprios pensando que estão matando o outro. Malditos animais! Malditos
animais que queriam levar pra casa o troféu, um pedaço do corpo do bandido, agora
assassino (Geísa, a mulher que Sandro levou pra fora do ônibus morre inicialmente com
um tiro da polícia e posteriormente com 3 tiros de Sandro – segundo o inquérito
policial).

Foram duas vítimas ao total: Geísa e Sandro. Duas vidas que representavam uma só
realidade, a da menina que queria ser alguém na vida, oriunda de família humilde e que
estava lutando e a de um garoto que, quando menino viu sua mão ser morta em sua
frente, fugiu de casa com sete anos, não teve instrução nenhuma, achou seu abrigo nas
caçadas das ruas do Rio de Janeiro, não sabia ler nem escrever, era invisível (um
fantasma social) e teve seu momento de glória apagado pelos policias que o prenderam
e o aniquilaram, enfim, a realidade da pobreza brasileira.

"Foi a polícia que matou os colegas de Sandro na Candelária e foi a polícia que
completou o trabalho sujo, é como se as duas pontas se fechassem: à polícia cabe o
trabalho sujo que a sociedade não quer ver, mas que em algum lugar obscuro dos seus
pensamentos deseja que se realize, que se anulem os "Sandros", que os "Sandros"
desapareçam das nossas vistas, nós não queremos ver essa realidade, não queremos
suportar essa realidade. Então a invisibilidade é, ao final, reconquistada pela
produção policial da invisibilidade, através da anulação que a morte gera." (Luiz
Eduardo Soares, em depoimento no filme)

A pergunta que ficou ao final do filme é: Quem é que vai defender um Sandro? Num
momento onde o instinto animal é aflorado pela imagem do criminoso, a primeira
reação é atacar, a hipocrisia toma a sua maior face nesse momento, no momento onde os
cidadãos de bem vão pra cima do homem mal para arrancar-lhe a pele, os cidadãos de
bem que precisam zelar pela paz social, os cidadãos de bem que representam tudo o que
é solidariedade social, que ajudam seu próximo, fazem suas doações em instituições de
caridade, dão seus dízimos em igrejas, os cidadãos de bem que são exemplos para todos
seguirem, cidadãos de bem que necessitam fazer justiça com as próprias garras. Quem
vai defender um marginal? Existe alguma lei que o proteja?

Um policial, em depoimento no filme, disse o seguinte: "Quem, naquela patama, não


mataria aquele sequestrador?". A resposta que vem é a de que estamos em uma
sociedade da animais, verdadeiros animais, que não pensam e dizem que pensam e que,
com isso, negam a sua própria condição de humano.

O que fica, após assistir à todas as aquelas cenas marcantes, é a idéia de que estamos
numa sociedade onde o espetáculo das tragédias diárias é um espetáculo que camufla
toda a compreensão profunda da verdadeira causa do problema social brasileiro, um
espetáculo que legitima a força punitiva do Estado, mudando o foco do problema, que
inicialmente seria o de resolver as desigualdades, e que posteriormente se caracteriza
pela caça aos bandidos. A tragédia do "Ônibus 174" foi uma tragédia que deixou bem
explicitado as duas faces problema da desigualdade e como consequência a
marginalidade, criminalidade, invisibilidade e a "pena"( como a ultima tentativa, como a
finalização do processo de aniquilamento de certa camada social, tornando-os únicos
responsáveis por seus próprios "destinos" e isentando todo o resto da população e o
Estado, como ente capaz e responsável pelo "bem estar" dos cidadãos, à princípio,
iguais perante a lei).

A pena a qual eu me refiro não é aquela pena estatal, na sua concepção jurídica, mas
uma pena (no sentido de penitência e de sanção mesmo) que se inicia desde o início do
desenvolvimento social, uma pena caracterizada com o etiquetamento, e logo após pela
"procura" dos etiquetados, intensificado pelo processo já referido da invisibilidade, em
que vidas são tornadas fantasmas, são negligenciadas pelo poder estatal e sociedade
como um todo, processo esse que se finaliza com o extermínio desses escolhidos.
Extermínio, que na grande maioria das vezes é transmitido como forma de show,
colocando o vagabundo capturado, ou morto pelas mãos do Estado e o "herói
exterminador" que é aplaudido pelo restante do corpo social como uma forma de se
sentir mais protegido da insegurança implantada não pelos marginais, mais resultado da
própria sociedade, que como já disse, os cria.

Mário Davi Barbosa.


Setembro de 2006.
http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESSO/edicoes/14/imprime69693.asp

Cinema
A violência em cartaz
O filme Tropa de Elite trouxe à cena pública uma grande discussão acerca do comportamento da corporação e
os conflitos violentos que permeiam a sociedade.
por Guilhermo Aderaldo

Há algum tempo pudemos ver nos mais variados veículos de comunicação a notícia da distribuição ilegal de cópias do filme
Tropa de Elite (2007), de José Padilha, Bráulio Mantovani e Rodrigo Pimentel, recentemente lançado no cinema. A imensa
procura pelo filme no mercado negro fez com que, antes mesmo do lançamento na telona, a obra já viesse provocando
grandes discussões.

Aliás, o atual cinema brasileiro, em grande medida, tem sido uma das áreas mais reflexivas em relação ao dilema da violência
em nossa sociedade. Filmes como O Invasor (2001), Cidade de Deus (2002), e Quanto Vale ou é por quilo? (2005) têm
suscitado grandes questionamentos, cada um a sua maneira. Na área documental, não ficamos para trás. Alguns exemplos
marcantes são os filmes: Notícias de uma guerra particular (1999), O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000),
ônibus 174 (2002), Prisioneiro da grade de ferro (2004).

Os mesmos policiais que matam


e torturam sadicamente são os que lutam contra
a corrupção

De todos os exemplos anteriores, certamente, Tropa de Elite foi um dos que mais gerou debates. Seja pelo escândalo da
aparição de cópias do filme nas barracas de camelôs e nos programas de troca na internet, seja pelo modo cru através do qual
mostra a ação dos policiais do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), o que tem dado margem para acusações
como a de que o filme seria “fascista” e faria apologia à violência policial.

No entanto, a questão que perpassa todos esses filmes, bem como o trabalho daqueles que buscam pensar a particularidade
da violência no Brasil e, conseqüentemente, deste artigo, parece ser a mesma: em que medida a violência no Brasil se
encontra situada ao nível das relações culturais e suas representações? A pergunta é central e Tropa de Elite, sem a menor
dúvida, serve como bom filtro para pensá-la.

Algo que surpreende e que tem assustado algumas pessoas ao assistirem Tropa de Elite é uma ambigüidade existente em
praticamente todos os planos (por exemplo, entre os universitários que falam de democracia e direitos na universidade e atuam
como se seus próprios direitos valessem mais do que o dos outros fora da Instituição), e que fica mais aparente no tocante ao
comportamento dos policiais do Bope, uma vez que, os mesmos policiais que matam e torturam sadicamente são os que lutam
contra a corrupção e possuem uma auto-coerção moral extremamente rígida.

Trata-se, no fundo, da mesma ambigüidade existente na fala do morador da periferia, que acredita que o sistema judiciário no
Brasil é desonesto e mais rigoroso com os pobres e mesmo assim é favorável à pena de morte, ou do líder político que
acredita de fato em sua posição como representante do “povo” e acha no seu íntimo que o voto de sua empregada não deveria
ter o mesmo peso que o seu.

Para aqueles que se familiarizam com a literatura das Ciências Sociais no tocante aos estudos sobre a violência no Brasil,
talvez estas ambigüidades não sejam tão surpreendentes, afinal, não há como tratar este tema sem tocar nesta espécie de
curto-circuito mental incorporado pela maioria das pessoas em nosso País.

Mas de onde vem isso? O que isso tem a ver com a violência? E em que medida este comportamento ambíguo pode servir
como exemplo da especificidade da violência social no País?

Para responder a estas questões poderíamos partir de vários pontos. Se pegarmos a história brasileira recente, por exemplo,
veremos que a democracia é algo extremamente novo e ainda não compreendido pela maioria dos brasileiros, até porque, de
certa forma, não vivido na prática.

Após anos de ditadura militar, autoritarismo e falta de liberdade de pensamento, paradoxalmente acompanhados de um
considerável crescimento econômico e do desenvolvimento de um mercado consumidor no País1,passamos por uma
turbulenta transição e a democracia nos chegou em meio à recessão e ao aumento considerável dos índices brasileiros de
violência.

Este árduo processo de incorporação democrática tornou-se extremamente custoso do ponto de vista cultural, afinal, como
coloca Luiz Eduardo Soares (2000), consolidou-se no Brasil a primazia do relacional sobre o individual e do hierárquico sobre o
igualitário.

Para Soares, este processo confuso de construção da cidadania liga-se à sociedade como uma espécie de Double Bind, ou
seja, uma dupla mensagem que, por um lado coloca os indivíduos em um quadro de cidadania legal (você é um cidadão como
os demais), e por outro deslegitima na prática esta legalidade (você não é um indivíduo como todos os outros e, portanto, deve
colocar-se em seu lugar). Isto, por sua vez, beneficia as elites que “[...] mais uma vez e como sempre [...] aproveitam a
ambigüidade a seu favor, enquanto os grupos sociais subalternos introjetam e experimentam a ambivalência como
inefetividade da igualdade e a dupla perda de proteção e do sentido de dignidade, que tradicionalmente se associam às
posições inferiores na ordem hierárquica”. (SOARES, 2000, p 37)

Esta condição produz uma violência simbólica bastante clara quando focamos a auto-representação dos menos privilegiados
na sociedade brasileira. Para compreendermos melhor este processo, basta imaginarmos o choque de um indivíduo
interpelado por duas linguagens (“você é cidadão como todos os outros e terá a proteção legítima do Estado” e “você não é
cidadão como os demais e terá a proteção que merecer de acordo com sua posição nesta sociedade”) e que vai aos poucos
descobrindo a impossibilidade de sua plena integração nos circuitos legítimos de distribuição das oportunidades de poder.

É este processo ambíguo de inscrição na democracia que faz com que, constantemente, as camadas menos privilegiadas
sejam criminalizadas, o que por sua vez liga a noção de cidadania à idéia de subversão, como se para aqueles que se
encontram associados às categorias menos privilegiadas pela verticalidade desta dinâmica hierarquizante de nossa sociedade,
os próprios direitos pudessem ser interpretados como luxo.

Se pensarmos no confronto entre as representações de trabalhador e bandido, em meados da década de 80, nas comunidades
pobres do Rio de Janeiro, conforme aponta o trabalho da antropóloga Alba Zaluar2 (2000), veremos que são sustentadas pela
mesma ambigüidade.

Um observador que não estiver muito atento poderá pensar que entre o trabalhador e o bandido existe uma separação rígida, e
é justamente isto que Alba Zaluar tenta desmitificar. “Ao contrário da polícia, entretanto, o bandido, além de garantir a
inviolabilidade de sua área, pode ser reconhecido como o defensor do trabalhador nos casos em que ofensas pessoais sofridas
por este precisem ser vingadas. Diante da inevitável humilhação e da ausência de proteção policial ou jurídica, o bandido
transforma- se no vingador de seu povo”. (ZALUAR, 2000, p 141)

O que parece dar sentido à separação entre um e outro é um ethos ligado à posição de provedor da família que faz com que o
trabalhador em seu íntimo sinta-se superior moralmente aos bandidos, e também apareça em público como tal. Da mesma
forma, os bandidos vêem os trabalhadores como “otários” por considerarem que o trabalho apenas os insere em uma condição
de maior exploração por parte das elites.

Se pensarmos no confronto entre as


representações de trabalhador e bandido, veremos que
são sustentadas pela mesma ambigüidade

Ficha técnica
Título Original: Tropa de Elite
Gênero: Ação
Tempo de Duração: 118 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2007
Site Oficial: www.tropadeeliteofilme.com.br
Distribuição: Universal Pictures do Brasil / The Weinstein
Company
Direção: José Padilha

O tempo todo, esta mesma lógica aparece em Tropa de Elite. Pensemos nas experiências vividas pelos policiais no interior da
corporação. Há os que corrompem não porque são naturalmente “malfeitores”, mas sim porque aprenderam, por meio de suas
experiências, que o “sistema”, em sua capilaridade, apenas pode premiar aqueles que aprendem a atuar em suas brechas. Já
outros, tornam- se praticamente incorruptíveis (o que não significa que não se tornem violentos e nem se utilizem de práticas
ilícitas em seu trabalho) mesmo tendo passado por experiências parecidas com outros companheiros que agem de forma
distinta.

Do mesmo modo que os trabalhadores e os bandidos convivem de maneira pacífica por compartilharem uma mesma
experiência de segregação, embora moralmente se diferenciem, os policiais “honestos” e “desonestos” compreendem a lógica
que orienta as ações de uns e outros, e convivem em seus batalhões, na maioria das vezes pacificamente, resolvendo seus
problemas, com certa freqüência, nos espaços vazios do próprio sistema que representam.

O fato por trás de todas estas experiências é o mesmo: a dificuldade de justificar a posição ocupada em uma sociedade
dilacerada pela ausência de acabamento do projeto democrático e a luta cotidiana por tornar as próprias conquistas (uma
promoção, um bem, ou até os valores morais) algo subjetivamente compreensível num mundo onde o público, e no mesmo
movimento, o “outro”, perde o valor intrínseco e torna-se apenas um “lugar de passagem”, um meio sobre o qual o poder deve
fazer-se presente.

Outra antropóloga fundamental no tocante ao tema da violência, Tereza Caldeira (1998), mostra como todo este processo
provocou uma redefinição (deteriorada) do espaço público e, conseqüentemente, da própria cidade, cuja representação mais
aparente são os muros, bem como os diversos mecanismos de segregação ligados à segurança privada.

Corrupção e impunidade precisam


ser focalizadas como duas faces de uma mesma
moeda

Em grande medida, o medo acaba funcionando como o verdadeiro fator de (des)integração em nossa sociedade. É ele que nos
torna “iguais” em alguma instância, já que as instituições não puderam fazê-lo, e também é ele que se coloca na raiz das
diversas contradições surgidas da “dupla mensagem” descrita anteriormente, como aquela que faz com que os mais pobres
constantemente incriminem a si mesmos e apóiem como medida à violência uma maior aparelhagem da polícia ou ações
punitivas mais rígidas.

Isso mostra como o curto-circuito, ou essa “dupla mensagem” produzida pela ausência de um processo democrático construído
em bases sólidas favorece as elites que assistem de camarote à naturalização das divisões socioeconômicas a partir da base
individualista que coloca a idéia de que o mundo oferece condições iguais para que todos lutem por sua afirmação. Segundo
Soares “a dupla mensagem ou a duplicidade de modelos culturais estimula e justifica, por motivos óbvios, a corrupção das
elites e a impunidade de seus próprios crimes. Corrupção e impunidade que precisam ser focalizadas, aliás, como duas faces
de uma mesma moeda, cunhada pela dinâmica típica da via autoritária de desenvolvimento do capitalismo. No âmbito da
modernização conservadora , as polícias sempre foram as disciplinadoras e exploradoras dos grupos subalternos. Todos
sabemos, por exemplo, que a tortura só se tornou tema da agenda pública quando atingiu as camadas médias”. (SOARES,
2000, P 38)

social, em que o medo é o único agente (des)integrador, cabe à polícia o


Diante deste quadro
papel mais ingrato, pois em uma sociedade que torna invisíveis aqueles que podem
circular apenas no espaço público e, por conseqüência, não possuem a condição de
transitar livremente nos espaços privados e de consumir os produtos reservados aos que
se vêem nesta posição, cabe à corporação policial a paradoxal missão de defender o
público e legitimarem a lei. Objetivos que, em um universo em que o consumo tem
preferência sobre a cidadania, não podem ir além da mera fachada.

“É engraçado porque ninguém faz passeata quando morre policial. Protesto é só pra morte
de rico. Quando eu vejo passeata contra a violência, parceiro, eu tenho vontade de sair metendo porrada!”
(Capitão Nascimento Tropa de Elite)

À polícia então, fica reservado o trabalho “sujo”3 que o restante da sociedade não quer fazer, como o isolamento e a proteção
das elites e a punição e o extermínio das populações mais pobres das quais os próprios policiais, na grande maioria dos casos,
são parte4.

E o trabalho deve ser feito sob a condição de tornar a si próprio invisível, porque se trata de uma missão que precisa ser
realizada em silêncio, sem perturbar o sono daqueles que habitam os paraísos privados, pagando como podem por sua
segurança.

Os policiais, como guardiões do público e, por conseqüência, do deteriorado, se imiscuem neste universo simbólico e acabam
sucateados friamente. Em grande parte das vezes nos próprios discursos acadêmicos que os inserem no papel de vilões,
quando são apenas uma peça na engrenagem brutal de nossa sociedade. Os carrascos que cumprem as ordens que o mundo
que devem proteger os transmite (o que não significa que possam justificar seus erros com base neste argumento). E este é o
papel talvez mais importante, e por isso perturbador, que Tropa de Elite torna visível. É daí que surgem as infundadas críticas
de que o filme faz uma apologia à polícia.

O foco do filme (pelo menos em sua primeira parte) está, não no Bope, mas, sim, na sociedade que torna o Bope possível, e
na busca desesperada da consciência de um policial desta corporação em conciliar o inconciliável, conquistando um lugar para
si próprio e seus valores em um mundo em frangalhos.

O ponto alto do longa-metragem talvez esteja no desafio (bem cumprido) de fazer


aquilo que nenhum antes dele havia feito, ou seja, tornar aqueles que todos esperamos
ver como “monstros” (os policiais) “homens”, e aqueles, os quais gostaríamos de ver
como portadores da esperança (os intelectuais) em personagens cegos, sem cair em um
maniqueísmo que torna os policiais “bons moços” e tira o sentido dos trabalhos
intelectuais.

O atual cinema brasileiro tem sido uma das áreas mais reflexivas em relação ao dilema da violência em nossa sociedade. Filmes
e documentários como Cidade de Deus (foto 1), Quanto Vale ou é por quilo? (foto 2) e Ônibus 174 (foto 3), têm suscitado grandes questionamentos, cada um
a sua maneira
abordagem tem
dado margem para
acusações como a
de que o filme faria
apologia à violência
policial, mas seu
foco principal está
na busca
desesperada da
consciência de um
membro da
corporação em
conciliar o
inconciliável: um
mundo em
frangalhos

É claro que o fato de o filme se pautar pelo ponto de vista “moralista” e “unilateral” do policial permite várias chaves
interpretativas, sobretudo para um espectador envolvido pela “dupla mensagem” mencionada até aqui e para o qual “pensar” a
violência significa escolher um dos lados ao invés de compreender o conflito.

No entanto, não podemos responsabilizar uma obra de ficção (que consiste sempre em um exagero da realidade) pelas
interpretações feitas sobre ela. Basta pensarmos em autores como Machado de Assis ou William Faulkner, entre outros que
costumavam envolver os leitores em armadilhas da própria narrativa, para compreendermos como a interpretação foge ao
controle da obra e de seu produtor.

Certamente, o ponto mais frágil do filme ficou por conta da ligação simplista que une o consumo de drogas à violência, pois aí
realmente temos uma questão delicada sendo tratada com pouco cuidado. Isto ocorre porque esta é a única questão
consensual do filme, a única que faz com que todos os policiais (“honestos” e “desonestos”) concordem e exterminem suas
crises pessoais.

Quando o tráfico aparece desta maneira no longa-metragem, todo o cenário retratado na primeira parte, em que o problema
recai sobre o “sistema”, sobre a falta de credibilidade das instituições e a conseqüente degradação do espaço público e da
cidadania, perde o foco e a narrativa passa apenas a fazer eco à postura policial.

Ora, em diversas sociedades, o consumo e a repressão às drogas é tão alto quanto aqui e nem por isso a violência ocorre da
mesma forma. Se pensarmos na imagem apontada por Alba Zaluar (1999) do menino favelado com um AR15, que ele
considera como símbolo de sua virilivirilidade, cheirando cocaína produzida na Colômbia, ouvindo Funk e sonhando com um
tênis Nike, veremos que o problema é um pouco mais complexo, pois as questões realmente importantes neste caso dizem
respeito a “quem o levou até esses instrumentos do seu poder e prazer” e a “como se estabeleceram e continuam sendo
reforçados nele os valores que o impulsionaram à ação na busca irrefreada do prazer e do poder” (ZALUAR, 1999, p. 94).

O grande dilema brasileiro é o da


verticalidade de um autoritarismo que subordina os direitos à
ordem hierárquica

Estas são questões que, obviamente, independem de fatores econômicos e o consumo de drogas, embora seja o grande
financiador da violência, está longe de poder ser pensado como seu elemento causador.

É como se tivéssemos dois filmes. Um que mostra a violência de forma complexa, capilarizada no “sistema” e na “crise” do
policial e outro que a enquadra de modo simplista ao tráfico de drogas, deixando um pouco de lado aquilo que é mostrado na
primeira parte.

De todo modo, é esta dimensão perturbadora que incomoda no longa- metragem, não permitindo uma acomodação da
consciência dos espectadores, e é esta mesma dimensão que dá o mote para que possamos pensar a particularidade da
violência em nossa sociedade.

Voltando ao ponto de origem do artigo, ou seja, à questão sobre em que medida a violência no Brasil se encontra situada ao
nível das relações culturais e suas representações, podemos dizer, com uma margem considerável de segurança, que o
grande dilema brasileiro é o da verticalidade de um autoritarismo que subordina os direitos à ordem hierárquica, tornando
aquilo que é de todos em espaço de ninguém, conseqüentemente, fazendo com que noções que deveriam representar a todos,
como a de cidadania, também percam o sentido. Dito isto, podemos chegar à conclusão de que a violência constitui-se apenas
na face mais aparente da sociedade que temos e que o discurso dos policiais, mesmo que sob a rigidez do “moralismo” e da
truculência, presente o tempo todo na narração do Capitão Nascimento, tem muito a nos dizer.

Referências
CALDEIRA, T. Cidade de muros. São Paulo: Edusp, 1998.
SOARE S, L. E. Meu casaco de general: Quinhentos dias no front da segurança pública no Rio de Janeiro. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2000.
____. Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência In: PERE IRA, C. A.; RO NDELLI, E; SCHOLLHAMMER ,
K. e HER SCHMANN, M. (Orgs). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000. pp.23-74.
VE LHO, G. Individualismo e cultura. Notas para uma Antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2004.
ZALUAR, A. A máquina e a revolta: As organizações populares e o significado da pobreza. Rio de Janeiro: Editora
brasiliense, 2000.
____. Violência e crime. In: MICELI, S. (Org). O que ler nas ciências sociais brasileira (1970-1995). Antropologia. São Paulo:
Editora Sumaré, 1999. pp. 13 a 107.
____. A globalização do crime e os limites da explicação local. In: SANTO S, J. V. T. (Org). Violência em tempo de
globalização. São Paulo: Editora Hucitec, 1999. pp. 91-100.

1 - Durante a ditadura militar, o chamado “milagre econômico”, permitiu aos governos militares, apesar da repressão, o investimento na expansão
das instituições culturais e no fortalecimento da indústria nacional. No entanto, o preço do endividamento feito neste período foi pago com a
recessão após a volta à democracia.

2 - Em A máquina e a revolta, Alba Zaluar mostra que, entre os moradores da Cidade de Deus, classificações como “trabalhador” e “bandido”
possuíam uma distinção bastante flexível na medida em que não tratavam os termos como dois grupos isolados, mas de identificações que de
certa forma se completavam no interior de uma mesma gramática de exclusão.

3 - O “trabalho sujo” inscrito aqui, diz respeito ao sentido que a atuação coercitiva da polícia ganha numa sociedade onde o espaço público
encontra-se deteriorado, juntamente com aqueles que vivem em sua função. Um caso exemplar foi o de Sandro, seqüestrador do ônibus 174,
asfixiado pelos policiais que na verdade apenas cumpriram a vontade da maioria da população, no interior da viatura.

4 - Basta lembrarmos dos grupos de extermínio no interior da própria polícia, ou nas milícias que comandam os morros cariocas atualmente, onde
o trabalho consiste no pagamento aos policiais por parte dos comerciantes e da população local para que tenham acesso a uma “proteção”
privada. Vale aqui, também, a lembrança das palavras do chefe do departamento de polícia no documentário Notícias de uma guerra particular
(1999).

Guilhermo Aderaldo é mestrando em


Antropologia Social pelo IFCH – Unicamp.
E-MAIL: guilhermo.aderaldo@bol.com.br

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